Fomos à Índia em busca da nascente sagrada do Rio Ganges,
um lugar onde a realidade e a mitologia se despem de fronteiras
O BERÇO DO MITO: as corredeiras de Gangotri estão a 18 quilômetros da nascente. Mas para os hindus é ali que brota a mística do Ganges
O sol mal subiu o horizonte e os estridentes alto-falantes já amplificam mantras intermináveis no calçadão à beira-rio. Inúmeros sadhus (os homens-santos do hinduísmo), comerciantes, peregrinos e viajantes transitam em meio às vacas, enquanto grupos de macacos saltam de terraço em terraço. Começa assim apenas mais um dia em Haridwar, cidade sagrada às margens do Rio Ganges.Haridwar é um microcosmo da intrincada cultura indiana. A cidade é um dos sete locais mais sagrados para os hindus. Seu nome significa "portão para os deuses", e ela de fato é o ponto de partida para Dev Bhoomi, a "Terra dos Deuses", uma região de vales no Himalaia onde dezenas de santuários são freqüentados há cerca de 2 mil anos por devotos em busca da purificação espiritual. O fluxo humano é constante e atinge picos inacreditáveis a cada 12 anos, quando ocorre o festival religioso conhecido como Kumbh Mela (veja quadro adiante).
Em Haridwar a cerimônia de adoração ao Ganges ilumina a noite
O histórico de veneração desse rio é longo. Ele é personificado no hinduísmo como uma deusa, Maa Ganga (Mãe Ganga), e seu aspecto físico surge na gruta de gelo conhecida como Gaumukh - a nascente geográfica do Ganges. De acordo com a mitologia, Ganga manifestou-se na forma de rio para absolver os pecados dos antepassados do lendário rei Bhagiratha.Banhar-se no Ganges é a ambição de uma vida para muitos devotos. Os hindus crêem que um mergulho ritual no rio livra-os de pecados, mesmo os gravíssimos, como o assassinato de brâmanes, a mais superior das castas. Acham também que ter suas cinzas nele depositadas melhora seu carma ou até mesmo antecipa a libertação do eterno ciclo de morte e renascimento. Acredita-se também que sua água nunca estrague, mesmo com a enorme quantidade de impurezas nele despejadas (veja quadro no final da reportagem).Os degraus de pedra que levam ao rio, chamados pelos indianos de ghats, são o centro espiritual de Haridwar. Um desses, o Har-Ki-Pairi (literalmente "degraus de Deus"), é tido como o local preciso onde o Ganges deixa as montanhas e chega às planícies.
Banhar-se no Ganges é a ambição de uma vida inteira para muitos hindus, que acreditam na redenção de seus pecados após mergulho
Ao anoitecer, os degraus ganham ainda mais vida e beleza. Sempre tomado de coloridas multidões, o Ganges fica ainda mais belo quando os peregrinos acendem velas flutuantes para homenagear seus ancestrais, enquanto cânticos religiosos são entoados pela massa. É a cerimônia de Ganga Aarti.O status de sagrado, porém, tem seu lado mais mundano: a cidade vive mesmo é do intenso comércio e de toda a indústria voltada ao turismo religioso. Depois das cerimônias, as atenções se voltam para os estreitos bazares que vendem todo tipo de quinquilharia: desde comida básica para as multidões até deliciosos doces típicos e produtos da medicina aiurvédica.
Um Sadhu (homem santo hindu) faz seus rituais perto da nascente
A ironia das cidades sagradas é que elas nem sempre atraem almas em busca da salvação. Há séculos o disfarce de sadhu, por exemplo, é um dos preferidos de fugitivos da lei na Índia, e alguns deles parecem apenas interessados em fumar seus cachimbos de haxixe e posar para turistas estrangeiros em troca de algumas rúpias.Se os ghats de Haridwar são considerados o ponto onde o Ganges encontra a planície, é em outro lugar que o rio parece de fato deixar o domínio dos deuses, seguindo finalmente seu lento flagelo rumo ao Golfo de Bengala, onde deságua. Essa transição está nos meandros de Rishikesh, outra cidade sagrada situada na baixa cadeia de montanhas que antecede o Himalaia. Conhecida como a "capital mundial" da ioga, ganhou fama internacional nos anos 60, quando hippies e ícones da contracultura, como os Beatles, aqui vieram para meditar. Hoje Rishikesh está repleta de pousadas para mochileiros e templos para peregrinos e estudiosos. Isso porque se acredita que meditar em Rishikesh também aproxime os devotos da salvação. Assim, longas pontes suspensas atravessam o rio, sempre congestionadas pelo deslocamento de pedestres, macacos, vacas e motos. Mas mesmo com o movimento intenso, algumas partes da cidade ainda oferecem a tranqüilidade necessária para a meditação, com pequenas cabanas escondidas em bosques silenciosos e tranqüilas praias fluviais.
DEGRAUS DA FÉ: peregrinos vêm de toda a Índia para se banhar nas águas do Ganges em Haridwar
Rishikesh é também a estação final dos trens para quem quer ir à nascente do Ganges. Daqui em diante segue-se de carro, ônibus ou caminhão por longas estradas repletas de curvas e à beira de vales e precipícios. As perigosas ultrapassagens de veículos sobrecarregados garantem o ar de aventura e desafio. O rio, por sinal, tem outro nome aqui: Bhagirathi. Ele só passa a se chamar Ganges em sua confluência com o Rio Alaknanda, outro de seus braços sagrados. Ao longo da estrada, o curso d'água finalmente pode ser admirado em seu ambiente natural, cercado de verde e ainda sadio, emoldurado por íngremes montanhas pontilhadas de vilarejos remotos. Depois de passar os portões, entra-se de fato na terra de tantos mitos. Não há região em toda a cadeia do Himalaia tão central no misticismo hindu quanto as montanhas do Garhwal, distrito onde fica a nascente. Lá, a população é predominantemente rural e majoritariamente hindu. Mas de castas altas.Até recentemente, essa rota demandava semanas numa viagem que cruza vales e montanhas selvagens. Apenas alguns sadhus se atreviam a desbravar. Depois da breve guerra indo-chinesa em 1962, o acesso melhorou consideravelmente com a construção de estradas. Com o acesso facilitado e o desenvolvimento do turismo religioso, a importância do local aumentou muito, atraindo cerca de 250 mil visitantes anualmente, entre abril e outubro.
A pequena Rishikesh ganhou fama ao se tornar o local de meditação preferido de celebridades, como os Beatles
No período das monções, porém, a jornada torna-se perigosa devido a enormes e freqüentes deslizamentos. Isso ocorre em boa parte porque as florestas foram derrubadas por madeireiros britânicos logo após a independência, aumentando bastante os riscos de quedas de barreiras. A média anual de fatalidades chega a 200.Durante nossa viagem por esse trecho, o velho táxi foi interrompido por militares antes de cruzar uma ponte. Fomos então informados que haveria uma forte explosão dentro de alguns segundos, e teríamos de aguardar para cruzá-la.
COMPRAR E REZAR: religiosos e pessoas comuns se misturam nos bazares noturnos de Haridwar, após um dia de orações à beira do rio.
As explosões faziam parte da construção de mais uma barragem no Rio Bhagirathi. São obras controversas: uma vasta região de beleza natural que será alagada com a inauguração da represa de Tehri, uma das maiores do mundo. Além disso, trata-se de uma área de permanente risco de terremotos. Alheias a isso, milhares de pessoas passam conduzindo rebanhos, carregando colheitas ou apenas retornando para suas vilas distantes. Quanto mais se sobe, maiores são as cicatrizes deixadas pelas enormes avalanches. As estradas começam a tornar-se ruins e perigosas. Longas pontes cruzam precipícios, enquanto rebanhos ovinos, em suas fugas do inverno, dificultam um progresso mais rápido.
A próxima parada nessa jornada pelo rio sagrado é um dos mais importantes santuários da região, chamado Gangotri - a nascente mitológica do Ganges. A chegada à noite nessa cidade é caótica, com centenas de veículos estacionados na estrada estreita. Dezenas de guias e funcionários de pousadas oferecem seus serviços. Mas isso não significa que o turismo tenha levado alto padrão ao lugar. A infra-estrutura é simples e pouco adequada para o frio. Coincidência ou não, no início de novembro acontece a cerimônia anual que decreta o fim da temporada de peregrinação.
RITUAL DA BELEZA: o caminho até a nascente é um verdadeiro festival de cores, o que acaba por atrair também os turistas, além dos peregrinos
Assim, durante o rigoroso inverno, apenas alguns sadhus e gurus em busca de meditação permanecem em seus abrigos. A vila fica vazia e todos os trabalhadores voltam às suas cidades de origem até a próxima primavera, quando outra cerimônia reinaugura a temporada.Apesar do longo histórico de peregrinações, o atual templo de Gangotri foi erguido só no início do século 18. Situado a 3042 metros de altitude, é uma estrutura simples, de cimento cinza, que não traduz a importância de sua localização. Religiosos atentos evitam qualquer desrespeito - os locais logo avisam turistas do risco de ter suas câmeras destruídas caso tentem usá-las.
O silêncio das noites frias só é quebrado pelo ronco do rio, que nesse ponto corre por entre enormes blocos de pedra. Um desses, conhecido como Shivling, torna-se visível apenas durante o inverno, quando o nível da água é menor. Diz a lenda que é ali onde Shiva teria sentado para receber o Ganges em seus cabelos. Gangotri pode ser a nascente mitológica do rio, mas é em Gaumukh, a 18 quilômetros dali, que ele realmente nasce. A caminhada até o berço do Ganges é feita à sombra de imponentes paredões. Uma longa e gradual subida, passando por cenários de natureza exuberante. Em alguns trechos, a trilha é estreita e cavada na rocha, beirando precipícios vertiginosos sobre o Bhaghirati. Assim como nas estradas, enormes áreas de desmoronamento cortam a trilha.No outono, a folhagem atinge seu pico e mancha a paisagem glacial e cinzenta com todos os tons possíveis. Cruza-se com sadhus, turistas e peregrinos. Em comum, a admiração pela beleza e pela atmosfera de companheirismo que floresce nesse lugar especial.
Em Gangotri, a natureza intocada compõe o cenário ideal para quem busca a paz espiritual, embalada pelos mantras e pelo ronco suave do rio sagrado
Para aquecer o corpo, barracas ao longo da trilha servem chá e refeições simples. Numa delas encontramos um baba, ou guru. Com roupas leves e claras e carregando apenas uma bolsa, o velho sábio caminhava tranqüilamente, guardando as raízes que colhia pela trilha. "Cada uma tem propriedades medicinais diferentes", explicava, alisando sua longa barba. Apesar do grande número de visitantes, a fauna ainda é abundante. A região é protegida pelo status de parque nacional, atraindo projetos de conservação ambiental, reflorestamento e coleta de lixo. Por isso, pode-se avistar grupos de veados fugindo das trilhas ao avistar humanos, enquanto pássaros sobrevoam as alturas do vale. Outras espécies, como o raro leopardo-da-neve, preferem viver nos recantos mais inacessíveis das montanhas. Mas estão lá.
A ORIGEM: a nascente geográfica do rio, em Gaumukh, é tão bela quanto difícil de alcançar
Conforme a trilha segue rumo à nascente do Ganges, a vegetação rareia e a natureza passa a mostrar sua face mais crua. O fim de tarde traz ventos frios e nuvens ameaçadoras. Nesse ambiente hostil, a quase 4 mil metros de altitude, fica o acampamento de Bhojbasa, onde todos passam a noite antes de prosseguir os últimos quilômetros. O desconforto da altitude tem suas compensações: o forte luar ilumina os picos nevados, enquanto o céu estrelado de beleza ímpar paira sobre o panteão dos deuses. Antes dos primeiros raios de sol, os devotos enfrentam o frio para orar aos céus. Depois de mais duas horas de caminhada, Gaumukh finalmente abre-se ao olhar: uma enorme gruta rasga o paredão de gelo e parece pronta a engolir os visitantes extasiados. O nome significa "a boca da vaca", e de seu interior, como uma língua de água gélida e cristalina, surge o Ganges, numa pequena porém forte torrente.
Uma placa na gruta onde nasce o rio avisa: "Deus e a natureza são sinônimos. reverenciar a natureza é reverenciar a Deus"
A sensação dentre os que a esse ponto chegam é de profunda contemplação e reverência. É como se os visitantes fossem convidados de honra na morada dos deuses, uma zona onde o limite entre o mito e o real parece mais tênue.
RUMO A PAZ: a pequena Rishikesh ganhou fama internacional graças às suas pontes repletas de peregrinos e às celebridades que freqüentam a cidade tida como capital da ioga
A todo momento, porém, o caráter remoto e selvagem de Gaumukh, onde as forças da natureza reinam supremas, faz peregrinos e turistas se lembrarem da sua condição de mortais. Grandes pedras e blocos de gelo caem sem aviso, e a toda hora ouvem-se estalos de rachaduras na geleira. Como reza o clichê, a Índia é uma experiência espiritual, mas a verdade é que ela pode ser também uma experiência extremamente física. Por isso, é comum ver as pessoas posando apressadamente para fotografias.Afastado dos flashes, os sadhus realizam solitários seus rituais à beira do rio, purificando-se na água glacial e entoando seus cânticos. Uma placa instalada próxima a Gaumukh tenta conscientizar os visitantes locais: "É um ritual religioso coletar da água sagrada do Ganga em sua nascente. Mas conservar a fauna, a flora, a água e o solo é a verdadeira religiosidade. Sendo assim, você deve transcender o ritual religioso e ser verdadeiramente religioso. Jamais esqueça: Deus e a natureza são sinônimos. Reverenciar a natureza é reverenciar a Deus".
O sol mal subiu o horizonte e os estridentes alto-falantes já amplificam mantras intermináveis no calçadão à beira-rio. Inúmeros sadhus (os homens-santos do hinduísmo), comerciantes, peregrinos e viajantes transitam em meio às vacas, enquanto grupos de macacos saltam de terraço em terraço. Começa assim apenas mais um dia em Haridwar, cidade sagrada às margens do Rio Ganges.Haridwar é um microcosmo da intrincada cultura indiana. A cidade é um dos sete locais mais sagrados para os hindus. Seu nome significa "portão para os deuses", e ela de fato é o ponto de partida para Dev Bhoomi, a "Terra dos Deuses", uma região de vales no Himalaia onde dezenas de santuários são freqüentados há cerca de 2 mil anos por devotos em busca da purificação espiritual. O fluxo humano é constante e atinge picos inacreditáveis a cada 12 anos, quando ocorre o festival religioso conhecido como Kumbh Mela (veja quadro adiante).
Em Haridwar a cerimônia de adoração ao Ganges ilumina a noite
O histórico de veneração desse rio é longo. Ele é personificado no hinduísmo como uma deusa, Maa Ganga (Mãe Ganga), e seu aspecto físico surge na gruta de gelo conhecida como Gaumukh - a nascente geográfica do Ganges. De acordo com a mitologia, Ganga manifestou-se na forma de rio para absolver os pecados dos antepassados do lendário rei Bhagiratha.Banhar-se no Ganges é a ambição de uma vida para muitos devotos. Os hindus crêem que um mergulho ritual no rio livra-os de pecados, mesmo os gravíssimos, como o assassinato de brâmanes, a mais superior das castas. Acham também que ter suas cinzas nele depositadas melhora seu carma ou até mesmo antecipa a libertação do eterno ciclo de morte e renascimento. Acredita-se também que sua água nunca estrague, mesmo com a enorme quantidade de impurezas nele despejadas (veja quadro no final da reportagem).Os degraus de pedra que levam ao rio, chamados pelos indianos de ghats, são o centro espiritual de Haridwar. Um desses, o Har-Ki-Pairi (literalmente "degraus de Deus"), é tido como o local preciso onde o Ganges deixa as montanhas e chega às planícies.
Banhar-se no Ganges é a ambição de uma vida inteira para muitos hindus, que acreditam na redenção de seus pecados após mergulho
Ao anoitecer, os degraus ganham ainda mais vida e beleza. Sempre tomado de coloridas multidões, o Ganges fica ainda mais belo quando os peregrinos acendem velas flutuantes para homenagear seus ancestrais, enquanto cânticos religiosos são entoados pela massa. É a cerimônia de Ganga Aarti.O status de sagrado, porém, tem seu lado mais mundano: a cidade vive mesmo é do intenso comércio e de toda a indústria voltada ao turismo religioso. Depois das cerimônias, as atenções se voltam para os estreitos bazares que vendem todo tipo de quinquilharia: desde comida básica para as multidões até deliciosos doces típicos e produtos da medicina aiurvédica.
Um Sadhu (homem santo hindu) faz seus rituais perto da nascente
A ironia das cidades sagradas é que elas nem sempre atraem almas em busca da salvação. Há séculos o disfarce de sadhu, por exemplo, é um dos preferidos de fugitivos da lei na Índia, e alguns deles parecem apenas interessados em fumar seus cachimbos de haxixe e posar para turistas estrangeiros em troca de algumas rúpias.Se os ghats de Haridwar são considerados o ponto onde o Ganges encontra a planície, é em outro lugar que o rio parece de fato deixar o domínio dos deuses, seguindo finalmente seu lento flagelo rumo ao Golfo de Bengala, onde deságua. Essa transição está nos meandros de Rishikesh, outra cidade sagrada situada na baixa cadeia de montanhas que antecede o Himalaia. Conhecida como a "capital mundial" da ioga, ganhou fama internacional nos anos 60, quando hippies e ícones da contracultura, como os Beatles, aqui vieram para meditar. Hoje Rishikesh está repleta de pousadas para mochileiros e templos para peregrinos e estudiosos. Isso porque se acredita que meditar em Rishikesh também aproxime os devotos da salvação. Assim, longas pontes suspensas atravessam o rio, sempre congestionadas pelo deslocamento de pedestres, macacos, vacas e motos. Mas mesmo com o movimento intenso, algumas partes da cidade ainda oferecem a tranqüilidade necessária para a meditação, com pequenas cabanas escondidas em bosques silenciosos e tranqüilas praias fluviais.
DEGRAUS DA FÉ: peregrinos vêm de toda a Índia para se banhar nas águas do Ganges em Haridwar
Rishikesh é também a estação final dos trens para quem quer ir à nascente do Ganges. Daqui em diante segue-se de carro, ônibus ou caminhão por longas estradas repletas de curvas e à beira de vales e precipícios. As perigosas ultrapassagens de veículos sobrecarregados garantem o ar de aventura e desafio. O rio, por sinal, tem outro nome aqui: Bhagirathi. Ele só passa a se chamar Ganges em sua confluência com o Rio Alaknanda, outro de seus braços sagrados. Ao longo da estrada, o curso d'água finalmente pode ser admirado em seu ambiente natural, cercado de verde e ainda sadio, emoldurado por íngremes montanhas pontilhadas de vilarejos remotos. Depois de passar os portões, entra-se de fato na terra de tantos mitos. Não há região em toda a cadeia do Himalaia tão central no misticismo hindu quanto as montanhas do Garhwal, distrito onde fica a nascente. Lá, a população é predominantemente rural e majoritariamente hindu. Mas de castas altas.Até recentemente, essa rota demandava semanas numa viagem que cruza vales e montanhas selvagens. Apenas alguns sadhus se atreviam a desbravar. Depois da breve guerra indo-chinesa em 1962, o acesso melhorou consideravelmente com a construção de estradas. Com o acesso facilitado e o desenvolvimento do turismo religioso, a importância do local aumentou muito, atraindo cerca de 250 mil visitantes anualmente, entre abril e outubro.
A pequena Rishikesh ganhou fama ao se tornar o local de meditação preferido de celebridades, como os Beatles
No período das monções, porém, a jornada torna-se perigosa devido a enormes e freqüentes deslizamentos. Isso ocorre em boa parte porque as florestas foram derrubadas por madeireiros britânicos logo após a independência, aumentando bastante os riscos de quedas de barreiras. A média anual de fatalidades chega a 200.Durante nossa viagem por esse trecho, o velho táxi foi interrompido por militares antes de cruzar uma ponte. Fomos então informados que haveria uma forte explosão dentro de alguns segundos, e teríamos de aguardar para cruzá-la.
COMPRAR E REZAR: religiosos e pessoas comuns se misturam nos bazares noturnos de Haridwar, após um dia de orações à beira do rio.
As explosões faziam parte da construção de mais uma barragem no Rio Bhagirathi. São obras controversas: uma vasta região de beleza natural que será alagada com a inauguração da represa de Tehri, uma das maiores do mundo. Além disso, trata-se de uma área de permanente risco de terremotos. Alheias a isso, milhares de pessoas passam conduzindo rebanhos, carregando colheitas ou apenas retornando para suas vilas distantes. Quanto mais se sobe, maiores são as cicatrizes deixadas pelas enormes avalanches. As estradas começam a tornar-se ruins e perigosas. Longas pontes cruzam precipícios, enquanto rebanhos ovinos, em suas fugas do inverno, dificultam um progresso mais rápido.
A próxima parada nessa jornada pelo rio sagrado é um dos mais importantes santuários da região, chamado Gangotri - a nascente mitológica do Ganges. A chegada à noite nessa cidade é caótica, com centenas de veículos estacionados na estrada estreita. Dezenas de guias e funcionários de pousadas oferecem seus serviços. Mas isso não significa que o turismo tenha levado alto padrão ao lugar. A infra-estrutura é simples e pouco adequada para o frio. Coincidência ou não, no início de novembro acontece a cerimônia anual que decreta o fim da temporada de peregrinação.
RITUAL DA BELEZA: o caminho até a nascente é um verdadeiro festival de cores, o que acaba por atrair também os turistas, além dos peregrinos
Assim, durante o rigoroso inverno, apenas alguns sadhus e gurus em busca de meditação permanecem em seus abrigos. A vila fica vazia e todos os trabalhadores voltam às suas cidades de origem até a próxima primavera, quando outra cerimônia reinaugura a temporada.Apesar do longo histórico de peregrinações, o atual templo de Gangotri foi erguido só no início do século 18. Situado a 3042 metros de altitude, é uma estrutura simples, de cimento cinza, que não traduz a importância de sua localização. Religiosos atentos evitam qualquer desrespeito - os locais logo avisam turistas do risco de ter suas câmeras destruídas caso tentem usá-las.
O silêncio das noites frias só é quebrado pelo ronco do rio, que nesse ponto corre por entre enormes blocos de pedra. Um desses, conhecido como Shivling, torna-se visível apenas durante o inverno, quando o nível da água é menor. Diz a lenda que é ali onde Shiva teria sentado para receber o Ganges em seus cabelos. Gangotri pode ser a nascente mitológica do rio, mas é em Gaumukh, a 18 quilômetros dali, que ele realmente nasce. A caminhada até o berço do Ganges é feita à sombra de imponentes paredões. Uma longa e gradual subida, passando por cenários de natureza exuberante. Em alguns trechos, a trilha é estreita e cavada na rocha, beirando precipícios vertiginosos sobre o Bhaghirati. Assim como nas estradas, enormes áreas de desmoronamento cortam a trilha.No outono, a folhagem atinge seu pico e mancha a paisagem glacial e cinzenta com todos os tons possíveis. Cruza-se com sadhus, turistas e peregrinos. Em comum, a admiração pela beleza e pela atmosfera de companheirismo que floresce nesse lugar especial.
Em Gangotri, a natureza intocada compõe o cenário ideal para quem busca a paz espiritual, embalada pelos mantras e pelo ronco suave do rio sagrado
Para aquecer o corpo, barracas ao longo da trilha servem chá e refeições simples. Numa delas encontramos um baba, ou guru. Com roupas leves e claras e carregando apenas uma bolsa, o velho sábio caminhava tranqüilamente, guardando as raízes que colhia pela trilha. "Cada uma tem propriedades medicinais diferentes", explicava, alisando sua longa barba. Apesar do grande número de visitantes, a fauna ainda é abundante. A região é protegida pelo status de parque nacional, atraindo projetos de conservação ambiental, reflorestamento e coleta de lixo. Por isso, pode-se avistar grupos de veados fugindo das trilhas ao avistar humanos, enquanto pássaros sobrevoam as alturas do vale. Outras espécies, como o raro leopardo-da-neve, preferem viver nos recantos mais inacessíveis das montanhas. Mas estão lá.
A ORIGEM: a nascente geográfica do rio, em Gaumukh, é tão bela quanto difícil de alcançar
Conforme a trilha segue rumo à nascente do Ganges, a vegetação rareia e a natureza passa a mostrar sua face mais crua. O fim de tarde traz ventos frios e nuvens ameaçadoras. Nesse ambiente hostil, a quase 4 mil metros de altitude, fica o acampamento de Bhojbasa, onde todos passam a noite antes de prosseguir os últimos quilômetros. O desconforto da altitude tem suas compensações: o forte luar ilumina os picos nevados, enquanto o céu estrelado de beleza ímpar paira sobre o panteão dos deuses. Antes dos primeiros raios de sol, os devotos enfrentam o frio para orar aos céus. Depois de mais duas horas de caminhada, Gaumukh finalmente abre-se ao olhar: uma enorme gruta rasga o paredão de gelo e parece pronta a engolir os visitantes extasiados. O nome significa "a boca da vaca", e de seu interior, como uma língua de água gélida e cristalina, surge o Ganges, numa pequena porém forte torrente.
Uma placa na gruta onde nasce o rio avisa: "Deus e a natureza são sinônimos. reverenciar a natureza é reverenciar a Deus"
A sensação dentre os que a esse ponto chegam é de profunda contemplação e reverência. É como se os visitantes fossem convidados de honra na morada dos deuses, uma zona onde o limite entre o mito e o real parece mais tênue.
RUMO A PAZ: a pequena Rishikesh ganhou fama internacional graças às suas pontes repletas de peregrinos e às celebridades que freqüentam a cidade tida como capital da ioga
A todo momento, porém, o caráter remoto e selvagem de Gaumukh, onde as forças da natureza reinam supremas, faz peregrinos e turistas se lembrarem da sua condição de mortais. Grandes pedras e blocos de gelo caem sem aviso, e a toda hora ouvem-se estalos de rachaduras na geleira. Como reza o clichê, a Índia é uma experiência espiritual, mas a verdade é que ela pode ser também uma experiência extremamente física. Por isso, é comum ver as pessoas posando apressadamente para fotografias.Afastado dos flashes, os sadhus realizam solitários seus rituais à beira do rio, purificando-se na água glacial e entoando seus cânticos. Uma placa instalada próxima a Gaumukh tenta conscientizar os visitantes locais: "É um ritual religioso coletar da água sagrada do Ganga em sua nascente. Mas conservar a fauna, a flora, a água e o solo é a verdadeira religiosidade. Sendo assim, você deve transcender o ritual religioso e ser verdadeiramente religioso. Jamais esqueça: Deus e a natureza são sinônimos. Reverenciar a natureza é reverenciar a Deus".
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