23.4.07

Tom a Vinícius...

Muito prazer, Lúcio Rangel

Quando o nome do jornalista, crítico musical, musicólogo e boêmio Lúcio Rangel (1914/1979) aparece, o que quase sempre se segue é a história de como ele apresentou Tom Jobim a Vinicius de Moraes, ajudando a formar uma das mais brilhantes e bem-sucedidas parcerias da música brasileira. E, de quebra, a bossa nova, gênero musical, aliás, que não tinha a simpatia de Lúcio. Simpatias à parte, só a apresentação já é um feito. Mas o fato é que a obra de Lúcio (um único livro, Sambistas e Chorões: Aspectos e figuras da música popular brasileira, publicado em 1962 e jamais republicado, além de miríades de artigos espalhados por variadas publicações, boa parte delas já extintas) só era acessível a vasculhadores de sebos e felizes colecionadores que entesouravam o livro, revistas e jornais com seus artigos. Para o comum dos mortais restavam as histórias da boemia, contadas freqüentemente de segunda mão, já que boa parte de seus companheiros de copo, gente como Carlos Lacerda, Rubem Braga, Paulo da Portela, Pixinguinha, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e o próprio Vinicius, já partiram desta. Pois, num espaço de poucos meses, um naco substancioso da obra de Lúcio Rangel voltou a estar disponível. No início deste ano, a Funarte e a Editora Bem-Te-Vi lançaram a Coleção Revista da Música Popular, edição fac-similar com os 14 números da revista que Lúcio criou (com Pérsio de Moraes) e editou entre 1954 e 1956. O calhamaço, com 775 páginas, traz artigos de gente como o próprio Lúcio, Almirante, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Sergio Porto (o cronista sobrinho de Lúcio que também encarnava Stanislaw Ponte Preta) e Jorge Guinle, um fanático pelo jazz como se sabe. Agora em abril, surgiu outra preciosidade. Samba, Jazz & outra Notas, coletânea de artigos de Lúcio, organizada e apresentada por Sergio Augusto, e editada pela Ediouro.
Arquivo Lúcio Rangel
Cartola, Lúcio e Nelson Cavaquinho

No livro, a deliciosa apresentação de Sergio – que é casado com a jornalista Maria Lúcia Rangel, filha de Lúcio - revela um homem culto, generoso, adorador de Pixinguinha e Louis Armstrong, da literatura francesa e dos filmes de John Ford. Também um boêmio inveterado, cheio de humor e alguma ranzinzice que dá a impressão de que sua maior obra foi mesmo a maneira como viveu. Impressão reforçada por Quarenta Anos, texto que Rangel publicou em 1954, portanto aos 40 anos de idade, na revista Manchete. “Afinal”, escreve ele, “nestes quarenta anos, o cronista viu e ouviu alguma coisa que vale a pena rememorar”. Na lista de coisas vistas e ouvidas estão “o divino Cartola” cantando Semente de Amor para um entusiasmado Rubem Braga; Aracy de Almeida cantando o X do Problema, de Noel Rosa, “que ela cantava X do, plobrema”; Nelson Cavaquinho bebendo vinho tinto e tocando um violão todo arrebentado no Mangue; Jararaca e Ratinho na embolada Sapo no saco, com a presença de (Leopold) Stokowski, o maestro de origem inglesa que dirigiu a Sinfônica de Nova York e gravou Cartola, Donga e o maestro Heitor Villa-Lobos a bordo do navio Uruguai, além de outras tantas histórias.Purista, fã do samba que chamava de verdadeiro e de jazz tradicional (Louis Armstrong era o supremo), Lucio Rangel desprezava novidades, detestava Dizzy Gillespie e torcia o nariz para Charlie Bird Parker e para o “xaroposo” Duke Ellington. Na música brasileira, idolatrava Pixinguinha, Sinhô, Cartola, Ismael Silva e Nelson Cavaquinho e virava o rosto para novidadeiros como Dick Farney (“um Bing Crosby de Cascadura”) e Lúcio Alves, ao mesmo tempo que desancava os cantores “operísticos” do início do século que “berravam” em vez de cantar. Em sua defesa do jazz negro de Nova Orleans, que considerava a “única expressão original da arte norte-americana”, distribuía bordoadas em gênios como George Gershwin (“autor de opereta popular”) e Cole Porter (“compositor mais ou menos medíocre”). Em artigo para a revista Mundo Ilustrado, em abril de 1959, intitulado ‘Carta a Vinicius de Moraes’, Lúcio rebate a “longa resposta” do poeta a “uma croniquinha” que escreveu (não publicada no livro). E conclui dizendo que acreditava sinceramente que o poeta tenha sentido “a mão de João Sebastião Bach pousar afetivamente no seu ombro, depois de fazer sua Marcha das Flores (...) Queria ver era você sentir a mão de José Barbosa da Silva, o Sinhô! Desse eu duvidava”.Em outro texto, o curto perfil em que apresenta o compositor Sinhô é antológico: “... mulato carioca, alfabetizado, pernóstico, com respostas prontas, gingando no andar, anel de ouro e gaforinha (topete) domada à brilhantina, tinha todo o sestro do carioca. Doido por política e por mulher, cabo eleitoral, brigão, capaz de dar o último níquel a um amigo, bebedor inveterado, astro número um das gafieiras, (...) sabendo usar com vantagem uma navalha, observador e satírico.” Em outra demonstração de sua verve, demole com bom humor o “cantor” Lamartine Babo, que “às vezes comparecia e divertia o público com sua voz de menina do Sion com má voz.” E, de quebra, Carmem Miranda “uma jovem que fazia trejeitos e caretas terríveis. E já cantava mal.”Que apareçam mais textos de Lúcio Rangel, a quem Tarik de Souza define na introdução da Coleção Revista de Música Popular, como “o principal formador do pensamento crítico da música popular brasileira na metade do século passado”. Eles jogam luz na música popular brasileira. Mas aqui entre nós, eu adoraria conhecer mais histórias desse boêmio apaixonado que viveu o Rio de Janeiro, seus personagens e sua música com tanta intensidade.PS: O lançamento de 'Samba, jazz e outras coisas' acontece nesta terça-feira, 24 de abril, a partir das 19h, no Bar Bip Bib (Rua Almirante Gonçalves, 50-D, tel.: 2267-9696), em Copacabana, Rio de Janeiro.

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