Há mais talento fora do eixo Rio-São Paulo do que sonha nossa vã filosofia
CURITIBA – Confesso que estava preocupado que a pouca qualidade da maior parte dos espetáculos que compuseram a programação do Festival de Teatro de Curitiba (FTC) se repetisse, ao contrário, o FTC de 2007 encerra sua celebração do teatro nacional com espetáculos de artistas que ainda não conhecia. Eles, esses artistas, deixaram claro que há mais talento fora do eixo Rio-São Paulo do que sonha nossa vã filosofia.
Antes de falar do espetáculo que assisti e, realmente, marcou-me dos que vi e que compunham a Mostra Oficial, “A Alma Imoral”, quero começar este artigo pelos espetáculos que assisti no Fringe, a Mostra Paralela do FTC.
Três espetáculos, dos assistidos (vale recordar que mais de 200 compunham o Fringe e que só estive por quatro dias no Festival), merecem destaque especial: “Barrela” (de Salvador), “Angu de Sangue” e “Ópera” (ambos de Recife).
Um Plínio Marcos visceral
Uma produção independente, com um jovem elenco, um jovem diretor, um diálogo com a jovem linguagem multimídia, enfim, a montagem soteropolitana de “Barrela”, texto do dramaturgo santista Plínio Marcos, tem a energia visceral que a juventude propicia. E juventude aqui tem mais a ver com a energia disposta pela equipe do que com a idade, embora a maioria dos artistas envolvidos na montagem não ultrapasse a segunda década de vida.
Eles são, na sua maioria, recém-formados pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas com talento e criatividade raros.
A montagem do promissor diretor Nathan Marreiro tem uma espécie de prólogo bastante interessante que contextualiza o público no universo hiper-realista seguido pela peça, colocando-nos como participantes da peça.
Nesse prólogo somos preparados para uma visita à penitenciária e recebemos as ordens e notificações de como devemos proceder em tal visita por atores vivenciando policiais. E a palavra “vivenciando” se mostra mais adequada que “interpretando”, não apenas aqui, mas nas atuações de uma forma geral, devido à naturalidade com que são vividos os papéis.
“Dentro do presídio”, o espectador entra no cotidiano ansioso e cruel da penitenciária, sendo voyer de uma situação, exacerbada nesse microcosmo, que reflete muitas de nossas desgraças cotidianas como a disputa pelo poder, o preconceito e a violência.
O elenco – André Nunes, Everton Paim, Heraldo Souza, Daniel Sobreira, Lindolfo Neto, Ruhan Alves e Victor Kizza – tem uma precisão e consciência do que faz em cena que alcança a naturalidade desejada à cena nos levando a esquecer que se trata de uma peça para acreditarmos estar visitando a penitenciária.
É preciso destacar, também, os vídeos concebidos pelo cineasta soteropolitano Paulo Fernandes que, em lugar de ter efeito meramente figurativo, funciona como um diálogo complementar que expressa a perturbação interior que aflige o personagem Portuga, por exemplo, ou ilustra a vida miserável a que tais personagens estão expostos.
Duas vezes Pernambuco
O público curitibano, além dos espectadores que acompanhavam o Festival de Teatro de Curitiba, têm muito a agradecer a Prefeitura do Município do Recife que auxiliou a viagem de “Angu de Sangue” e “Ópera”, produzidos pelo ator André Brasileiro, e que se apresentaram dentro do Fringe, Mostra Paralela do Festival.
Ambos trabalhos revelaram talentos, até então, pouco notados pra nós que conhecemos mais de perto o que se passa nos palcos da região Sudeste, sobretudo o eixo Rio-São Paulo, e, em escala bem reduzida, produções da região sul do País.
Nove contos do autor pernambucano Marcelino Freire serviram de texto para o eletrizante espetáculo “Angu de Sangue”. Segundo informações do programa da peça, não houve adaptação alguma da obra literária para o palco, mas a coloquialidade e fluência dos textos nos leva a pensar que foram urdidos para serem encenados e não apenas lidos. As histórias, que estão presentes nos livros “Angu de Sangue” e “Balé Ralé”, expõe com uma agressividade irônica grande parte dos problemas que atingem o homem contemporâneo que vive nas grandes cidades brasileiras. A fome, a falta de solidariedade, a violência, entre outros, são temas abordados pela peça.
Livre da autocomiseração a que tenderia o tratamento de tais assuntos, a ironia causa um riso burlesco, tratando assuntos sérios de maneira tal que causam um riso incômodo pra quem o ri.
O exemplo mais claro disso é “Muribeca”, em que uma mulher que se alimenta e alimenta seus filhos com o que recolhe dos lixos, faz um verdadeiro manifesto para que não desativem o lixão que garante o sustento da sua e de outras famílias. O inusitado das cenas levam a um riso ansioso, porque as ações inusitadas são tomadas graças ao desespero diante da fatalidade concreta de um cotidiano urbano em nada cor-de-rosa.
Em “Ópera”, de Newton Moreno (“Agreste”, “Assombrações do Recife Velho” etc), as diferenças são colocadas em cena por meio de pequenos quadros que abordam a homossexualidade, quadros entremeados por performances de dublagens com os atores caracterizados como Dalida, Rosana, Tina Turner, entre outros.
Impossível não reparar uma certa semelhança na estrutura dramática de “Ópera” e “Deus Sabia de Tudo Mas Não Fez Nada”, primeiro texto a chamar atenção ao talento de Newton, e longe de ser apenas uma comparação para quem viu ambos espetáculos, “Ópera” tem vida e criatividades próprias e se adequou perfeitamente ao humor irônico e burlesco do grupo, agora já batizado Coletivo Angu de Teatro.
A excelência de ambos espetáculos não seria possível, pelo menos por completo, se não fosse o talento exuberante de todo o elenco do Coletivo Angu de Teatro.
Uma resposta edificante
Em 2001, quando fazia o espetáculo “Buda”, a atriz Clarice Niskier foi convidada a participar de um programa de televisão e interpelada sobre sua religião respondeu que era uma “judia-budista”. Depois do intervalo do programa um fax, enviado por dona Leia, uma espectadora, corrigiu Clarice: “Judia-budista não existe. Ou bem você é judia ou bem você é budista”.
“A Alma Imoral” é a “resposta” mais que feliz à dona Leia. O livro homônimo do rabino serve de alicerce para adentrarmos num universo que nos convida à reflexão sobre nossas idéias estabelecidas. Acho que o melhor exemplo de como a fusão de conceitos, novas idéias e soluções de antigos problemas é a diferenciação entre os universos da Tradição e da Traição, sendo este último não asfixiado com o negativismo que damos ao adjetivo, mas Traição aos valores pré-estabelecidos e necessário para o atrito que leva a evolução de velhos conceitos.
Antes de falar do espetáculo que assisti e, realmente, marcou-me dos que vi e que compunham a Mostra Oficial, “A Alma Imoral”, quero começar este artigo pelos espetáculos que assisti no Fringe, a Mostra Paralela do FTC.
Três espetáculos, dos assistidos (vale recordar que mais de 200 compunham o Fringe e que só estive por quatro dias no Festival), merecem destaque especial: “Barrela” (de Salvador), “Angu de Sangue” e “Ópera” (ambos de Recife).
Um Plínio Marcos visceral
Uma produção independente, com um jovem elenco, um jovem diretor, um diálogo com a jovem linguagem multimídia, enfim, a montagem soteropolitana de “Barrela”, texto do dramaturgo santista Plínio Marcos, tem a energia visceral que a juventude propicia. E juventude aqui tem mais a ver com a energia disposta pela equipe do que com a idade, embora a maioria dos artistas envolvidos na montagem não ultrapasse a segunda década de vida.
Eles são, na sua maioria, recém-formados pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas com talento e criatividade raros.
A montagem do promissor diretor Nathan Marreiro tem uma espécie de prólogo bastante interessante que contextualiza o público no universo hiper-realista seguido pela peça, colocando-nos como participantes da peça.
Nesse prólogo somos preparados para uma visita à penitenciária e recebemos as ordens e notificações de como devemos proceder em tal visita por atores vivenciando policiais. E a palavra “vivenciando” se mostra mais adequada que “interpretando”, não apenas aqui, mas nas atuações de uma forma geral, devido à naturalidade com que são vividos os papéis.
“Dentro do presídio”, o espectador entra no cotidiano ansioso e cruel da penitenciária, sendo voyer de uma situação, exacerbada nesse microcosmo, que reflete muitas de nossas desgraças cotidianas como a disputa pelo poder, o preconceito e a violência.
O elenco – André Nunes, Everton Paim, Heraldo Souza, Daniel Sobreira, Lindolfo Neto, Ruhan Alves e Victor Kizza – tem uma precisão e consciência do que faz em cena que alcança a naturalidade desejada à cena nos levando a esquecer que se trata de uma peça para acreditarmos estar visitando a penitenciária.
É preciso destacar, também, os vídeos concebidos pelo cineasta soteropolitano Paulo Fernandes que, em lugar de ter efeito meramente figurativo, funciona como um diálogo complementar que expressa a perturbação interior que aflige o personagem Portuga, por exemplo, ou ilustra a vida miserável a que tais personagens estão expostos.
Duas vezes Pernambuco
O público curitibano, além dos espectadores que acompanhavam o Festival de Teatro de Curitiba, têm muito a agradecer a Prefeitura do Município do Recife que auxiliou a viagem de “Angu de Sangue” e “Ópera”, produzidos pelo ator André Brasileiro, e que se apresentaram dentro do Fringe, Mostra Paralela do Festival.
Ambos trabalhos revelaram talentos, até então, pouco notados pra nós que conhecemos mais de perto o que se passa nos palcos da região Sudeste, sobretudo o eixo Rio-São Paulo, e, em escala bem reduzida, produções da região sul do País.
Nove contos do autor pernambucano Marcelino Freire serviram de texto para o eletrizante espetáculo “Angu de Sangue”. Segundo informações do programa da peça, não houve adaptação alguma da obra literária para o palco, mas a coloquialidade e fluência dos textos nos leva a pensar que foram urdidos para serem encenados e não apenas lidos. As histórias, que estão presentes nos livros “Angu de Sangue” e “Balé Ralé”, expõe com uma agressividade irônica grande parte dos problemas que atingem o homem contemporâneo que vive nas grandes cidades brasileiras. A fome, a falta de solidariedade, a violência, entre outros, são temas abordados pela peça.
Livre da autocomiseração a que tenderia o tratamento de tais assuntos, a ironia causa um riso burlesco, tratando assuntos sérios de maneira tal que causam um riso incômodo pra quem o ri.
O exemplo mais claro disso é “Muribeca”, em que uma mulher que se alimenta e alimenta seus filhos com o que recolhe dos lixos, faz um verdadeiro manifesto para que não desativem o lixão que garante o sustento da sua e de outras famílias. O inusitado das cenas levam a um riso ansioso, porque as ações inusitadas são tomadas graças ao desespero diante da fatalidade concreta de um cotidiano urbano em nada cor-de-rosa.
Em “Ópera”, de Newton Moreno (“Agreste”, “Assombrações do Recife Velho” etc), as diferenças são colocadas em cena por meio de pequenos quadros que abordam a homossexualidade, quadros entremeados por performances de dublagens com os atores caracterizados como Dalida, Rosana, Tina Turner, entre outros.
Impossível não reparar uma certa semelhança na estrutura dramática de “Ópera” e “Deus Sabia de Tudo Mas Não Fez Nada”, primeiro texto a chamar atenção ao talento de Newton, e longe de ser apenas uma comparação para quem viu ambos espetáculos, “Ópera” tem vida e criatividades próprias e se adequou perfeitamente ao humor irônico e burlesco do grupo, agora já batizado Coletivo Angu de Teatro.
A excelência de ambos espetáculos não seria possível, pelo menos por completo, se não fosse o talento exuberante de todo o elenco do Coletivo Angu de Teatro.
Uma resposta edificante
Em 2001, quando fazia o espetáculo “Buda”, a atriz Clarice Niskier foi convidada a participar de um programa de televisão e interpelada sobre sua religião respondeu que era uma “judia-budista”. Depois do intervalo do programa um fax, enviado por dona Leia, uma espectadora, corrigiu Clarice: “Judia-budista não existe. Ou bem você é judia ou bem você é budista”.
“A Alma Imoral” é a “resposta” mais que feliz à dona Leia. O livro homônimo do rabino serve de alicerce para adentrarmos num universo que nos convida à reflexão sobre nossas idéias estabelecidas. Acho que o melhor exemplo de como a fusão de conceitos, novas idéias e soluções de antigos problemas é a diferenciação entre os universos da Tradição e da Traição, sendo este último não asfixiado com o negativismo que damos ao adjetivo, mas Traição aos valores pré-estabelecidos e necessário para o atrito que leva a evolução de velhos conceitos.
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