“Cartola” e a didática da poesia
“Cartola”, documentário dos pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda que estréia nesta sexta-feira, começa com imagens de arquivo do velório do sambista carioca na quadra da Mangueira em 1980 e a leitura em “off” pelo compositor Jards Macalé de trechos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Em seguida, surge na tela um esqueleto humano sendo percorrido por um microfone.
Há nessa sucessão de imagens um duplo significado. Primeiro, ela indica que “Cartola”, assim como “Brás Cubas”, será narrado por seu personagem-título do além-túmulo (no documentário, essa escolha se reflete na prioridade dada pelos diretores aos depoimentos em primeira pessoa do sambista).
Mas ela também aponta para um significado mais profundo. Machado de Assis morreu em 1908, mesmo ano de nascimento de Cartola. Para os diretores, essa coincidência de datas simboliza a transição da cultura acadêmica para a popular – da qual Cartola, como maior sambista da história, foi uma figura central.
São necessários apenas cinco minutos de projeção para constatar que “Cartola” foge do figurino dos documentários biográficos convencionais, como “Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje” (2003) ou “Vinicius” (2005).
A cena que melhor exemplifica o espírito do filme é a que ilustra o período de desaparecimento do compositor nos anos 40 e 50. Em vez de preencher o vazio daquele momento com entrevistas de terceiros, eles preferem deixar a tela preta por um longo período, enquanto se ouve ao fundo depoimentos em “off” sobre aquele período.
A maior virtude de “Cartola” é combinar o poético e o didático em doses iguais. Ferreira e Lacerda (respectivamente diretor e roteirista de “Baile perfumado” e “Árido movie”) reinventam o universo do sambista por meio de um criativo mosaico de sons e imagens, mas nem por isso deixam de lado a tarefa de recontar a trajetória única de Cartola.
Todos os momentos centrais da vida de Angenor de Oliveira estão no filme: a fundação da escola de samba Mangueira em 1928 com seu parceiro Carlos Cachaça; o êxito do compositor de músicas gravadas por ídolos do rádio como Francisco Alves e Carmem Miranda nos anos 30; o sumiço da vida pública nos anos 40 e 50, depois de contrair meningite, perder a mulher e sair da Mangueira; o famoso episódio de sua redescoberta pelo jornalista Sérgio Porto, que encontrou Cartola como lavador de carros em 1956; a criação do mítico bar Zicartola nos anos 60, onde a bossa nova foi apresentada ao samba, em um casamento fundamental para o futuro da MPB; a gravação de seu primeiro disco aos 66 anos de idade e a consagração no final da vida, com o sucesso de clássicos como “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho”.
Os diretores resgatam essas passagens por meio de uma impressionante pesquisa de imagens e uma série de entrevistas interessantes. Ao final, temos não apenas um documentário sobre Cartola, mas também uma pequena história do samba e do Rio de Janeiro no século 20.
No longo namoro entre cinema e música popular, que vai das chanchadas a “Vinicius”, de “Rio Zona Norte” a “2 filhos de Francisco”, poucos filmes conseguiram ficar à altura dos músicos que foram retratados ou que embalaram a trilha sonora. “Cartola” é certamente um deles
Há nessa sucessão de imagens um duplo significado. Primeiro, ela indica que “Cartola”, assim como “Brás Cubas”, será narrado por seu personagem-título do além-túmulo (no documentário, essa escolha se reflete na prioridade dada pelos diretores aos depoimentos em primeira pessoa do sambista).
Mas ela também aponta para um significado mais profundo. Machado de Assis morreu em 1908, mesmo ano de nascimento de Cartola. Para os diretores, essa coincidência de datas simboliza a transição da cultura acadêmica para a popular – da qual Cartola, como maior sambista da história, foi uma figura central.
São necessários apenas cinco minutos de projeção para constatar que “Cartola” foge do figurino dos documentários biográficos convencionais, como “Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje” (2003) ou “Vinicius” (2005).
A cena que melhor exemplifica o espírito do filme é a que ilustra o período de desaparecimento do compositor nos anos 40 e 50. Em vez de preencher o vazio daquele momento com entrevistas de terceiros, eles preferem deixar a tela preta por um longo período, enquanto se ouve ao fundo depoimentos em “off” sobre aquele período.
A maior virtude de “Cartola” é combinar o poético e o didático em doses iguais. Ferreira e Lacerda (respectivamente diretor e roteirista de “Baile perfumado” e “Árido movie”) reinventam o universo do sambista por meio de um criativo mosaico de sons e imagens, mas nem por isso deixam de lado a tarefa de recontar a trajetória única de Cartola.
Todos os momentos centrais da vida de Angenor de Oliveira estão no filme: a fundação da escola de samba Mangueira em 1928 com seu parceiro Carlos Cachaça; o êxito do compositor de músicas gravadas por ídolos do rádio como Francisco Alves e Carmem Miranda nos anos 30; o sumiço da vida pública nos anos 40 e 50, depois de contrair meningite, perder a mulher e sair da Mangueira; o famoso episódio de sua redescoberta pelo jornalista Sérgio Porto, que encontrou Cartola como lavador de carros em 1956; a criação do mítico bar Zicartola nos anos 60, onde a bossa nova foi apresentada ao samba, em um casamento fundamental para o futuro da MPB; a gravação de seu primeiro disco aos 66 anos de idade e a consagração no final da vida, com o sucesso de clássicos como “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho”.
Os diretores resgatam essas passagens por meio de uma impressionante pesquisa de imagens e uma série de entrevistas interessantes. Ao final, temos não apenas um documentário sobre Cartola, mas também uma pequena história do samba e do Rio de Janeiro no século 20.
No longo namoro entre cinema e música popular, que vai das chanchadas a “Vinicius”, de “Rio Zona Norte” a “2 filhos de Francisco”, poucos filmes conseguiram ficar à altura dos músicos que foram retratados ou que embalaram a trilha sonora. “Cartola” é certamente um deles
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