Professor do Dartmouth College, em Hannover, Estados Unidos, o físico e astrônomo Marcelo Gleiser, de 47 anos, é reconhecido por sua habilidade em traduzir para uma linguagem acessível aos leigos conceitos científicos herméticos e por criar convergências entre os fenômenos estelares e as artes e a história universal. Doutor pela Universidade de Londres, sua disciplina é conhecida no campus da universidade americana como física para poetas. Autor de cinco livros, roteirista e colunista de jornal há mais de dez anos, Gleiser é membro convidado da Academia Brasileira de Filosofia. Nesta entrevista a Continuum, por telefone, ele aborda o conceito físico de continuum espaço-tempo, que ganhou relevância com a teoria da relatividade de Einstein, em 1905, segundo o qual tempo e espaço são dimensões equivalentes. O físico aponta algumas aplicações do continuum espaço-tempo na vida cotidiana, como em aparelhos a laser e digitais e no sistema GPS, e esclarece que tempo e espaço têm relação direta com a velocidade da luz, por isso sua equivalência é imperceptível aos seres humanos: "[...] a teoria da relatividade mostrou que existe uma relação muito profunda entre o espaço e o tempo, e que a percepção que se tem da realidade é uma percepção míope".O que é o continuum para um cientista familiarizado com o assunto e para um leigo?Cientificamente, quando se fala em continuum, está-se falando em continuum espaço-tempo. Antes de Einstein, a concepção de espaço e tempo que tínhamos era a de Isaac Newton, que separava essas duas dimensões, chamadas de espaço e tempo absolutos. Para Newton, o espaço é a percepção humana da realidade, como nós vemos o mundo. É uma espécie de palco onde os fenômenos da natureza acontecem sem interferência. Quando Einstein criou, em 1905, a teoria da relatividade, mostrou que existia uma relação muito profunda entre o espaço e o tempo, e que a percepção que se tem da realidade é uma percepção míope.Como se dá essa relação?A diferença entre as teorias de Newton e de Einstein é que o primeiro separava o espaço e o tempo e o segundo mostrou que, na verdade, eles formam uma coisa só. Esse é o chamado continuum espaço-tempo. Einstein mostrou que a estrutura do continuum espaço-tempo tem a ver com a velocidade da luz. Quanto mais próximo da velocidade da luz se está, mais essa estrutura se revela. Como os movimentos humanos são muito mais lentos do que a velocidade da luz, que é a velocidade-limite, não se percebe a união do espaço e do tempo.Se tempo e espaço são uma coisa só, pode-se dizer que existe passado, presente e futuro?Passado, presente e futuro existem exatamente por causa da velocidade da luz. Ela é o limite da causalidade, da relação entre causa e efeito. Ela ordena nossa percepção da realidade. O continuum espaço-tempo é simplesmente uma relação que explica como as coisas acontecem.O conceito de continuum espaço-tempo tem aplicação prática?Existem várias aplicações práticas, uma delas é o sistema GPS. Tudo o que tem a ver com laser, tecnologia digital, energia de circuitos muito rápidos tem a ver com relatividade.Os cientistas admitem a possibilidade de falha no continuum espaço-tempo?Imagine o continuum espaço-tempo como se fosse a superfície de um colchão. Se não há ninguém sentado no colchão, ele é bem plano. Esse é o continuum da relatividade especial. Se alguém sentar no colchão, ele vai encurvar. Esse é o continuum da relatividade geral. Quanto mais massa, mais curva será a geometria do espaço-tempo. O efeito da massa é encurvar a geometria do espaço e alterar o fluir do tempo. O buraco negro é uma falha no continuum espaço-tempo. É uma região de espaço-tempo que tem tanta massa, tem tanta gravidade, que o espaço se curva de tal forma que se fecha sobre si mesmo. Nada escapa desse espaço, nem mesmo a luz, por isso se chama buraco negro. Em uma analogia, é como se uma pessoa se sentasse no colchão e ele a engolisse.Na história da humanidade, há alguma incongruência que possa ser vista como conseqüência dessa falha?Eu posso dizer o seguinte: a falha mais importante na história do universo é uma falha no espaço-tempo: o Big Bang, o início de tudo. Nascemos essencialmente de uma falha no espaço-tempo. No centro de nossa galáxia, a Via Láctea, há um buraco negro que pesa mais de 3 milhões de sóis. Exatamente lá, no olho da tempestade, vamos dizer assim, há uma grande falha no espaço-tempo.Como o continuum espaço-tempo pode ser aplicado nas diversas expressões artísticas?Existem várias discussões sobre o efeito da relatividade nas artes. Einstein escreveu a teoria da relatividade Especial em 1905, e Picasso pintou Les Demoiselles d'Avignon, obra que inaugura o cubismo, em 1907. As pinturas cubistas representavam todas as dimensões de uma pessoa ou objeto, como uma forma de desarticular a estrutura do espaço e rearticulá-la num plano bidimensional. Mesmo que Picasso e Einstein não tenham se conhecido, seu contexto cultural era o mesmo. Na literatura também há a idéia do relativismo. Pode-se contar a mesma história de maneiras diferentes, segundo pontos de vista diferentes e com um fluir diferente. Ou seja, o tempo é relativo, depende da percepção de cada um. Um livro profético é A Máquina do Tempo, escrito por H.G. Wells em 1895, dez anos antes da teoria da relatividade, que tem como tema a viagem no tempo por meio de uma máquina. Na música, no início do século XX, temos Mahler, Stravinsky e a idéia de repensar a representação da música, o ritmo. Todas essas vanguardas também sofreram a influência da teoria da psicanálise, de Freud, e trabalhavam com o inconsciente. No cinema, o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço (de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke) também apresenta a idéia de viagem no tempo e no espaço. Na verdade, é uma reflexão sobre o que significa ser divino, é uma reflexão sobre Deus. Outro filme, mais moderno, que trabalha a questão da viagem no tempo é Contato (de Robert Zemeckis), baseado no livro de Carl Sagan.Atualmente, temos a percepção de que o tempo passa cada vez mais rápido. Essa percepção tem a ver com o continuum?Essa percepção é somente psicológica. Mais do que nunca, estamos sendo bombardeados por informações, o que dá a impressão de que as coisas estão acontecendo mais rápido, já que o cérebro tem de processar de forma mais rápida essas informações. Nosso cérebro está processando muito mais inputs do que antigamente. Então, temos a impressão de que o tempo está passando mais rápido. Mas, em termos físicos, a Terra continua girando a cada 24 horas!O continuum pressupõe que tudo já está determinado?As leis de Newton poderiam ser utilizadas para prever tudo o que vai acontecer no futuro. Há uma questão filosófica muito profunda nisso, porque dessa forma se acaba com o livre-arbítrio. Já que tudo está predeterminado, não se tem mais escolhas. O que se mostrou na física moderna é que existem falhas e que nada está predeterminado. Sabemos que a Terra dá uma volta em torno de si a cada 24 horas, e isso vai continuar acontecendo. Futuramente, vai haver uma desaceleração, mas esse fenômeno vai demorar muito para acontecer. A Lua vai se afastar um pouco da Terra, mas isso não está agendado. Existem sistemas físicos com os quais podemos determinar o que vai acontecer no futuro. Eu escrevi um livro sobre o fim do mundo, chamado O Fim da Terra e do Céu, e creio que precisaríamos ter muito mais informações sobre o universo do que dispomos no momento para prever quando será o fim do mundo.Pesquisando para esta entrevista, deparamos com a expressão paradoxo do tempo. Você poderia explicar esse conceito e sua relação com o continuum?Um exemplo de paradoxo do tempo ocorre se hipoteticamente uma pessoa puder viajar mais rápido no tempo do que a velocidade da luz. A princípio, essa pessoa poderia voltar para o passado. Vamos supor que essa pessoa voltasse para o passado e matasse seu avô. Isso seria um paradoxo do tempo, pois essa pessoa não existiria no futuro. Existem várias tentativas de explicação desse paradoxo. Uma delas é que, se fosse possível viajar para o passado, isso criaria uma nova vertente do continuum, uma nova história. Outra diz que as leis da física parecem proibir que se viaje para o passado. Então, nesse caso, os paradoxos não existem. No momento, essa é a teoria mais aceita. Agora, viagens para o futuro são possíveis. Nesse caso, ocorre o que é chamado de paradoxo dos gêmeos da relatividade, que é o seguinte: imaginemos uma situação em que irmãos gêmeos se separam. Um fica na Terra, e o outro viaja, numa espaçonave, durante um tempo próximo ao da velocidade da luz. Quando um relógio viaja em uma velocidade alta, o tempo passa mais devagar. Então, o irmão que ficou na Terra teria envelhecido quarenta anos. E o que viajou próximo à velocidade da luz, quando retornasse à Terra, teria envelhecido somente vinte anos. Ele viajou vinte anos para o futuro. Essa situação hipotética, segundo a relatividade, é possível, contanto que haja uma máquina, um foguete, que viaje próximo à velocidade da luz.Quais as implicações filosóficas do conceito de continuum?As equações da relatividade são da física, e na matemática o conceito de continuum também existe. Mas ele pode ainda ter conseqüências filosóficas, como a idéia de que nossa percepção da realidade é limitada, já que nunca nos aproximamos da velocidade da luz. Temos, então, uma visão míope do que realmente acontece no mundo. Mas o continuum espaço-tempo é um conceito essencialmente da física, com várias conseqüências observacionais. As teorias de Einstein são teorias que estão muito além de nossa percepção do real. Uma coisa interessante da teoria da relatividade é que Einstein criou uma plasticidade do espaço. Antes dele, o espaço era rígido; depois, o espaço e o tempo passaram a ser coisas performáveis pela ação do observador. Existem várias maneiras de analisar como a plasticidade do espaço criada pela teoria da relatividade influenciou o pensamento artístico no século XX.
4.7.07
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment