Com a bandeira estropiada do rock, ele apagou as cicatrizes da fome, renegando com sangue os tapetes sedentos do show business. Depois, no enterro de sua geração, optou pela lua, e demoliu em segredo mais de mil quartos de hotel. Hoje, tão jovem e tão velho, Lobão é um bicho sem nome. Sem lua. E sem fome. Hooooowl! – Like a rolling stone! Uma boa notícia: Lobão acaba de acordar. Outra boa notícia: Lobão não quebrou o quarto durante a madrugada. Uma terceira boa notícia: Lobão nos espera às dez... Da manhã? "Sou um cara que dorme muito pouco, aí. Vou dormir às duas e acordo às quatro! Quatro e meia eu já tô trabalhando!" Pois bem, uma última notícia: teremos apenas alguns minutos em sua companhia, pois, como fomos informados, a "estrela" anda muito ocupada em fazer brilhar o seu último álbum, o contraditório e ameaçador "Acústico MTV".Dá nada! Nove da matina, e já estamos no bar do hotel. Entre garrafas de cerveja e um cigarro infinito na boca, espero, junto com os poetas Marcelo Noah e Diego Petrarca, pelo gigante João Luís Woerdenbag Filho, que veio a Porto Alegre para uma série de intervenções midiáticas na imprensa fecal. Faz frio na província, e a ansiedade do encontro nos impele a uma acalorada discussão: o rock brasileiro, ao contrário do argentino, que "todavía sigue demoliendo hoteles", teria, de uma vez por todas, optado pela inocência e pelo bom comportamento?Abrem-se as portas do elevador. Dez em ponto. Surge uma descomunal e macilenta figura, espécie de "Dom Quixote anti-tropicalista", com cara de mau e coração caolho. Erguemos os copos, e brindamos à sua "mala salud"! Lobão logo toma acento entre os convivas, engole a primeira cerveja, sem fumar, e sorri desconfiado ante o nosso nonsense. Eu inicio a entrevista:– Lobão, ¿nice boys don't play rock and roll?– Cara, pra mim, garotos bons são feitos pra tocar pagode! O rock brasileiro é muito Teletubbie, aí! Olha os Los Hermanos, por exemplo: uma merda! A parada aqui no Brasil é muito suavizada, tá entendendo? A gente fala que a MPB é bunda-mole, e tal... Mas o rock é muito mais! Tanto que a rapaziada fala por aí que eu sou meio anárquico... Mas, porra! Eu faço apenas o que qualquer pessoa normal deveria fazer! Não faço fofoca, caralho! Só dou minhas opiniões! Mas é que no país da fofoca, ter opinião é tabu!Lobão está às gargalhadas. Afinal, como disse Fernando Pessoa, "ter uma opinião é estar vendido a si mesmo; não ter opiniões é viver; ter todas as opiniões é ser poeta". E Lobão, definitivamente, é um poeta. Acendo outro cigarro, e "me acuerdo" do roqueiro espanhol Joaquín Sabina: "O único compromisso do artista é trair o seu público". Lobão parece se iluminar:– Claro! No disco "A vida é doce" eu tenho uma frase que é assim: "Ser traidor do seu próprio reino, ser traidor do seu próprio sexo, ser traidor do seu próprio meio". Quer dizer, eu sempre traí, tá entendendo? E isso é o que me salva! Pô, a contradição é a mãe da inteligência, cumpádi! E eu tô cagando um balde pra tudo isso!– ¡Caralho, Lobão! ¡Tu fala mal do Caetano mas no fundo tu é tropicalista, cara!– Claro que não, porra! Nunca fui! Tá me achando com cara de hippie retardatário? Puta que pariu! Odeio mulher de sovaco cabeludo e beijo na boca de quem eu não conheço! O tropicalismo é um atraso, rapá! Olha os Doces Bárbaros, em 76: todo mundo com cabelo no sovaco, pô... E já tava rolando aquele punk... Sex Pistols! The Clash! E os caras achando que tavam na vanguarda... Aquilo era a retaguarda da retaguarda! Uma merda! Não consigo extrair praticamente nada do que eles falavam!Vejo que o cigarro morreu solitário entre os dedos, sem que eu desse uma só tragada. Mesmo assim, uma frase caetânica insiste em latejar na minha cabeça: "A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul". Dou uma firme puxada no filtro, e percebo que Lobão, de fato, é o cara! Afinal de contas, ele representa tudo aquilo que Vitor Ramil sempre quis ser, mas não conseguiu, devido ao excesso de caracteres:– ¿O que tu acha da cultura do Rio Grande do Sul?– Cara, eu acho que o mais legal da cultura daqui é o rock and roll, pô! Bicho da Seda, Liverpool Sound, do caralho! E outra: se tem algo espetacular rolando atualmente é a Cachorro Grande! Pra mim, a Cachorro Grande faz parte do Panteon da música popular brasileira, tá entendendo? Chico Buarque, Caetano Veloso e Cachorro Grande! Eu, João Gilberto e Cachorro Grande! Caralho! Tá na hora da rapaziada promiscuir esses medalhões intocáveis! Temos que subverter essa merda de sacralização da MPB!– ¿E o que tu vê na Cachorro Grande como informação nova no rock?– A performance mortal! Acho que eles fazem a performance mais mortal que eu já vi no rock brasileiro, desde os Mutantes!Chegam mais cervejas. E em meio a tanta "mortalidade", acendo outro cigarro, enquanto observo Diego Petrarca evocar a figura de Julio Barroso. Lobão vibra ao ouvir o nome de seu maior parceiro, "suicidado" misteriosamente em 84.– Ah, grande Julião! Pô, no dia em que ele morreu, eu e o Cazuza cheiramos um puta carreirão em cima do túmulo dele, em pleno velório, lá no Cemitério do Caju! Eu cheguei pro Barrosão, o pai, e falei: "Libera aí que a gente tem uma pequena homenagem pro garoto". Então a galera caiu fora, e a gente estendeu ali mesmo, naquele vidrinho do caixão, bem em cima da narina do Julio!– ¿E qual a importância do Julio pra tua formação?– Porra! Ele é o meu mentor, cara! Todo esse papo de "ruptura com a MPB", e tal, tudo isso veio dele! Ele era um louco maravilhoso! Manjava muito de Marcel Duchamp, tá sabendo? E era todo desdentado! E o pior é que se orgulhava disso! Ele dizia: "Pô, quebrei chorando pelo Lennon..." Porra! Tava tomando cachaça! Não conseguiu segurar a cabeça e deu de cara no chão! O Julio era um cara muito louco, aí! Do caralho! Era o tipo de malandro que comia aeromoça no banheiro do avião, tá entendendo? Um gênio de verdade! E, pô, a perda desse cara foi a maior dor que eu tive na minha vida...Seguimos conversando sobre a morte. Lobão parece emocionado. Conta histórias e mais histórias sobre Julio Barroso, sobre as canções feitas em parceria, como a fantástica "Corações psicodélicos", sempre oscilando entre o choro e a gargalhada. Eu interrompo pra perguntar:– ¡E tu, Lobão! ¿Quantas vezes tu já morreu?Lobão sorri cinicamente:– Olha, cara, toda vez que eu fecho um ciclo eu morro. Minha sorte é que ainda consigo renascer! Mas, olha, me lembro de duas mortes especiais... A primeira foi por volta de 75, época em que eu tocava bateria no Vímana, minha primeira banda. Foi quando eu conheci o maluco do Patrick Moraz, que recém tinha saído do Yes. Ele passou um ano aqui no Brasil querendo entrar pro Vímana e fazer uma banda de rock progressivo pra concorrer com o Yes lá fora. E, pô, a gente tava envolvido nesse projeto... Até que um dia o cara chega da Inglaterra com uma sacolinha da Stuff Records, e fala assim: "Olha, rapaziada, pra mim encerrou", e joga em cima da gente os discos do Sex Pistols, The Clash, Elvis Costello, e mais uma porrada de bandas de ska! Caralho! Tudo aquilo tinha acabado de estourar na Inglaterra! Era a quebra do paradigma do rock progressivo, tá entendendo? O fim de toda aquela baboseira "paz e amor"... E, pô, aquilo tudo caiu como uma bomba na minha cabeça!– ¿E a segunda morte?– A segunda veio logo depois... Porque daí eu pensei: "Agora vou ter que me reinventar". Só que eu tava muito deprimido na época, porque eu tinha casado com a mulher do Patrick... E, pô, ela era muito possessiva, muito ciumenta, e não me deixava trabalhar, tá entendendo? Eu tava me sentindo em cárcere privado, e não sabia o que fazer pra cair fora. Aí um dia o Arnaldo Baptista foi lá em casa, e disse assim: "Vamos fazer uma banda". Ele já tava bem pirado na época! Então a gente montou um trio: ele no teclado, eu na bateria, e o Arnaldo Brandão, que era do Hanoi-Hanoi, no baixo. Aí logo rolou a idéia de sair pra tocar pelo Brasil, com a Combi do Arnaldo Baptista! Então chamei a minha mulher, contei a parada, mas ela não gostou muito... Ficou puta da cara! E, pô, eu tava muito dependente dela, aí... E fiquei muito louco com esse lance! Então a gente acabou quebrando o pau, tá entendendo? Fiquei puto, a gente brigou, e ela saiu pra trabalhar... Daí eu pensei: "Sabe duma coisa, vou me matar!" Engoli uns quinhentos comprimidos, enfiei um litro de uísque por cima, e telefonei pro Arnaldo Baptista: "Cara, vem pra cá! Vamos ensaiar!" Dez minutos depois, chega a Combi do Arnaldo. Eu já meio tonto... E quando a gente começou a tocar, caí duro, na hora! Fui acordar só trinta dias depois, rapá! Aí fiquei sabendo que o Arnaldo Baptista tinha me salvado, chamado a ambulância, porque o puto do Brandão tinha caído fora, todo cagado! E o mais louco é que algumas semanas depois, o Arnaldo Baptista entrou em crise psicótica, foi internado e também tentou se matar!Mais uma rodada de cervejas, e agora estamos sem crivo. Percebo que Lobão, de fato, aprecia o discurso sobre a morte. Mas, contraditoriamente, como diz Marcelo Noah, quando resolve escrever sobre a vida, acaba sempre compondo um clássico:- Lobão, "A vida é doce", "Vida bandida" e, principalmente, "Vida louca, vida"... ¿Como tu te sente sendo o cara que compôs a grande música do nosso maior poeta do rock, o Cazuza?– Pô, na real quem fez essa música foi o Bernardo Vilhena... Eu fiz apenas o refrão...– ¿Apenas?– Sim... E "Vida bandida" também foi ele que fez... Eu só dei uma mexida na letra... Pô, é que na época eu tinha muita preguiça mental, tá entendendo? E ainda tenho! Foi só a partir do meu disco "Nostalgia da modernidade" que eu me tornei um autor integral... Mas sobre o Cazuza, porra, eu nunca ouvia as músicas que a gente fazia em parceria, não! Eu me recusava a escutar, porque achava que ficavam muito ruins. As produções do Cazuza sempre foram uma merda! E, cara, acho que nunca ouvi um disco do Cazuza, tá sabendo? A real é que eu nunca ouvi nenhum disco brasileiro que não fosse o meu! Eu só ouvia no rádio, e dizia: "Uma merda! Uma merda!"– ¿E tu falava isso pro Cazuza?– Claro! Eu era mais velho, pô! Já queimei muita música do Cazuza só porque ele era um garotinho mimado! Eu falava: "Seu careca de merda, isso tá uma bosta!" E ele adorava! Porque, pô, eu era o único que não tinha piedade, tá entendendo?– ¿E na época, o que tu achou da saída dele do Barão?– Achei certo, pô! Isso é um lance natural... Eu mesmo tinha sido expulso d' Os Ronaldos... E por mau comportamento!– Falando em mau comportamento, ¿como foi aquela história que tu dormiu no tribunal?– Não dormi, cara, foi pior ainda... Eu fingi que tava dormindo! Foi assim: o meu advogado tinha subornado o juiz com umas caixas de uísque, e tal... E, porra! Eu era primário, e tinha sido preso com um galho de maconha! Pô, qualé? Era ridículo! Levei 132 processos por causa disso! Fui perseguido por quase dois anos! Tinha que andar sempre com advogado, hábeas corpus na mão, porque eu era preso toda hora, tá entendendo? Porra! Então fui lá pro julgamento, sabendo que eu tinha cometido apenas uma contravenção, e não um crime, e que a pena máxima pra isso é um ano, com direito a sursis... Quer dizer, um ano com liberdade total. Aí eu entro no tribunal, sento, e o juiz pergunta: "O senhor está arrependido?" E eu respondo: "Não, não tô arrependido! E não admito tutela do Estado, valeu?" Porra! Daí o cara já ficou puto! E sabe o que ele fez pra me provocar? Chamou o policial que tinha me conduzido do aeroporto até o tribunal, e disse assim, na frente de todo mundo: "Veja só, Fulaninho, eu tenho uma sobrinha que tá chegando de Amsterdam, e ela tá cheia de muamba... Ela tá vindo em tal e tal vôo, e eu quero que você vá até lá liberar essa muamba". Caralho! Quando eu ouvi isso, comecei a gargalhar de ódio! E gritei: "Ah, essa é ótima!" Então o juiz me olhou, e disse: "O que o senhor está falando?" E eu: "Perdão, Excelência, é que eu tava cochilando, e tive um sonho alucinante... O senhor me perdoe". Caralho! Aí ele ficou puto de vez! Olhou pro escrivão, e mandou assim: "O réu não somente tem má personalidade... O réu tem péssima personalidade". Puta que pariu! Daí eu falei: "Pô, além de ser um mau juiz, o cara é um péssimo psicólogo, aí!" E fudi com ele! Na mesma hora, entraram dois caras com as algemas, e me levaram direto pro presídio!Lobão agora está em pé, e gesticula aleatoriamente, como um verdadeiro "demônio da aurora"! Penso na crítica musical brasileira, e entendo por que nenhum desses imbecis tem a coragem de dizer, nas fuças do homem, que ele "se vendeu pro sistema".– ¿E como foi essa temporada em cana?– Pô, eu virei mascote do Comando Vermelho, aí! Tive até aula de tiro! Fiquei três meses por lá, fiz muitas amizades... Organizei o pessoal, tá entendendo? Descolei várias reformas pra parada! E, pô, no meio da marginália eu era maior autoridade, aí!– ¿E por que tu desistiu de influenciar politicamente a bandidagem?– Pô, é que no fundo aqueles caras são uns playboy, tá entendendo? Um monte de playboy, aí! Eles querem é ter carrão e comer criancinha! E eu não quero saber disso não! É muita maldade, cara! Tô fora! E falo isso porque conheci bem a parada... Cheguei até a dar tiro lá no Morro da Mangueira! Caralho, cumpádi! Foi muito louco! Rolou que eu tava lá, doido pra cacete, dezesseis dias sem dormir, e chega um helicóptero da polícia! Aí o bicho pegou! E, pô, eles tinham um puta arsenal lá no morro, tá sabendo? Tinha até bazuca, rapá! E os caras me diziam: "Lobão, vai pra baixo da mesa que tu vai ser o último a morrer!" E eu, cheiradaço pra caralho, respondia: "Que nada! Me dá um três-oitão aí que eu vou meter bala também!"Neste momento, somos interrompidos por uma sexy e graciosa voz feminina: "Pessoal, o Lobão tem que ir pro Jornal do Almoço", informa a produtora. Tudo bem, já estamos satisfeitos. Engulo o resto quente da última cerveja, e iniciamos as despedidas. Lobão está eufórico, ainda sob o efeito do Morro da Mangueira. Sinto o peso do trago, e a tontura me leva a pensar em Paulo Leminski: "O rock é um tipo de música feito por incompetentes para os inconformados". Retomo a consciência, e logo percebo que o cara já tá caindo fora: "Olha, rapaziada, eu já me diverti muito nessa vida!", ainda diz, antes de desaparecer pela porta giratória do hotel.Olho pro cinzeiro: atrolhado de baganas... De repente, volto a ser surpreendido pela voz grave do bandido: "Olha, rapá, voltei só pra te avisar! Não vai escrever nessa porra de revista que eu quebrei o quarto do hotel não, valeu? Mas, seguinte: se tivesse piscina aqui nessa parada, podicrê que eu teria me atirado pela janela, que nem o Charly García, aí!"
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