6.12.06

Sobre Manoel de Barros

Os livros seguintes Arranjos para Assobio, Livro de Pré-Coisas, O Guardador de Águas, Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave, O Livro das ignorãças, Livro sobre nada e Retrato do artista quando coisa formam a segunda fase de sua produção, período que o define como o poeta do pantanal e ao mesmo tempo do universal; o poeta das coisas íntimas; da valorização do desprezível para a criação, do que Hugo Friedrich chama de rebaixamento, da formulação de uma poética que assim se define:

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
Um homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para a poesia
.........................

As coisas que não levam a nada têm grande
Importância
Cada coisa sem préstimo tem seu lugar
Na poesia ou na geral
.........................

Tudo aquilo que nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima
Serve para a poesia
Os loucos de água e estandarte
Servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso!”
............................................(MP, 2-3)
A respeito do uso dos temas presos aos limites do chão, Berta Waldman, no artigo “A poesia ao rés do chão” comenta:
Essa coerência que tem por base a forte adesão à realidade, recortada miopicamente nos limites do chão, acabará por gerar uma dicção poética de espontânea naturalidade no uso de tons menores, sem grandiloqüência, que leva, no entanto, a simplicidade do requinte. (WALDMAN, 1992, p. 15).
Na obra de Manoel de Barros a utilização das coisas do chão, da realidade tomada do telúrico, assim como não criam uma arte grandiloqüente, não colocam o poeta como um ser superior que descreve a natureza como um cenário, utilizando um arsenal retórico que coloca o homem em condição mais elevada. O homem aparece descentrado de seu papel de dominação sobre os seres da natureza, nivelado à condição de coisa, submetendo-se a uma ordem geral válida para todos os seres, os quais continuamente transformam-se, em convergência com o conceito de desumanização, trazido por Friedrich a partir de ensaio de Ortega y Gasset, do qual encontra-se:
Esta se manifesta no abandono de estados sentimentais naturais, na inversão da ordem hierárquica, antes válida entre objeto e homem, deslocando agora o homem para o degrau mais baixo e na representação do homem partindo de um prisma que o faz parecer o menos possível com um homem. (ORTEGA y GASSET, apud FRIEDRICH, 1991, p. 169)
A palavra poética de Manoel de Barros trata de um
mundo deveniente, em que a metamorfose, a morte e a vida constituem a origem e a vida de todos os seres, da harmonia perene das coisas, um mundo que se transforma continuamente em suas virtualidades. (Ibidem, p. 130) (ORTEGA y GASSET apud FRIEDRICH, 1991, p. 130)
Outra essencial marca da poética de Manoel de Barros é a defesa da necessidade de abandonar a inteligência para o entendimento através do ser as coisas a fim de torná-las matéria de poesia: “Para entender nós temos dois caminhos: o da/ sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito./ Eu escrevo com o corpo/ Poesia não é para compreender, mas para incorporar/ Entender é parede: procure ser uma árvore.” (BARROS, Manoel. Arranjos para Assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 29), ou ainda, “Poeta é o ente que lambe as palavras e depois se alucina.” (BARROS, Manoel. O Guardador de Águas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.)
Poesia, s.f

Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da
manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas
frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos
com emprego de palavras imagens cores sons
etc. geralmente feitos por crianças pessoas
esquisitas loucos e bêbados.
(BARROS, Manoel. Arranjos para Assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 35)
Além da matéria da poesia vir explícita (as coisas do chão a compõem), além de ser necessário abandonar a inteligência para ser as coisas, há uma outra muito importante característica na poesia de Manoel de Barros que é a de propor uma estética em cuja linguagem apareça uma “língua errada”: “(...) Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua...” (BARROS, Manoel. O Guardador de Águas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1982.)

Em O Guardador de Águas encontra-se a metapoesia como tema em:

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de
aclará-los. Não existir mais reis nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém. (p. 56)
Para um mundo em constantes metamorfoses, é preciso criar uma linguagem que não seja conceitual, lógica e sem vigor e para isso Manoel de Barros cria uma poética em que o sentido normal das palavras desaparece: “O sentido normal das palavras não faz bem ao poema./.../ Uma certa luxúria com a liberdade convém”. Deseja uma linguagem em que haja um relacionamento voluptuoso com os termos, um relacionamento entre o criador e a palavra que seja livre e que tenha o gosto do impuro, em que se corrompam as palavras, em que sejam levadas à condição de incoerentes, tornando-as quimeras, pois estão-se escurecendo as relações entre os termos.
E porque propõe dar um “gosto incasto” aos termos, dispõe-se a uma agramaticalidade como norma para fugir ao padrão rígido da língua e do bem falar e, ao sugerir tal processo, sugere a liberdade a fim de fortalecer a linguagem e, ainda neste sentido, “Não existir mais reis nem regências” tornando a criação independente da lógica, da norma ou qualquer outro processo determinador.
Na medida em que propõe uma palavra diferente, que se origine da terra, da lama, que nasça corrompida, Manoel de Barros corresponde a uma tendência da lírica moderna definida em Estrutura da Lírica Moderna, já que organiza a sua literatura com uma linguagem radicalmente diversa da comum, a qual “associada aos conteúdos obscuros, gera perturbação”, ou ainda,
A língua poética adquire o caráter de um experimento, do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. O vocabulário usual aparece com significações insólitas. Palavras provenientes da linguagem técnica mais remota vêm eletrizadas liricamente. A sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões nominais intencionalmente primitivas.
(FRIEDRICH, 1991, p. 17-8)
No segundo metapoema escolhido, a palavra é o problema a ser discutido. Percebe-se que não é motivo de descanso; é, sim, um problema a ser resolvido — um prazeroso problema, é claro, já que constitui o conjunto poético do autor — sem que haja implicada uma necessidade de tratamento formal ou racional. Há sim um reforço daquela condição de alogicidade e de uma relação emotiva com a palavra.

Há quem aceite a palavra a ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro
chão corrompê-las,
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.
(BARROS, Manoel. Arranjos para Assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 20.)
O poema expressa a preferência do eu compositor pela palavra em estado de decadência, putrefata e que esteja pronta para uma mudança, pois o poeta quer dar-lhes novo sentido; quer que, renascidas do chão, sujem-no de branco, tornando-se impiedoso para arrancar o insignificante, o esconso como condição do renascer, da ressurreição com novos e originais sentidos.
Representando um esvaziamento semântico, aparecem nos dois primeiros versos: “palavra a ponto de osso”, “de oco”, “ao ponto de ninguém”, “nuvem”, em oposição a “palavra com febre”, “decaída”, “fodida”, “ao ponto de entulho” que fazem do poema um repositório de destroços e inutilidades, mas através dos quais opera-se simbolicamente a passagem cíclica da morte à vida. O desgaste com a palavra bela, não interessa, porque é de ninguém ou fluida como nuvem.
Em Retrato do artista quando coisa, editado em 1998, Manoel de Barros, embora tenha, como o próprio título denuncia, criado um conjunto de poemas que tematizam a coisa, ou, mais propriamente, a transformação do poeta em coisa, ainda tem como marca fundamental de seu trabalho a poesia sobre poesia. Para exemplificar a transformação do ser-poeta em coisa, há o seguinte texto entre tantos que poderiam ser recolhidos:

Sentado sobre uma pedra estava o homem
desenvolvido a moscas.
Ele me disse, soberano:
Estou a jeito de uma lata, de um cabelo, de um cadarço.
Não tenho mais nenhuma idéia sobre o mundo.
Acho um tanto obtuso ter idéias.
Prefiro fazer vadiagem com letras.
Ao fazer vadiagem com letras posso ver quanto
é branco o silêncio do orvalho. (p. 51)
Além de trazer uma característica da literatura de Manoel de Barros já apresentada: a do homem que pretende desligar-se da razão, do conhecimento, da ordem lógica e condicionante, neste poema encontra-se explicitada a condição do homem-coisa: “Sentado sobre uma pedra estava o homem / desenvolvido a moscas” ou mais especificamente: “Estou a jeito de uma lata, de um cabelo, de um cadarço.” Para criar a atmosfera do insólito, do inesperado, na perspectiva da plena liberdade criadora, utiliza-se de “dois tipos de cristalizações de palavras” (CASTRO, 1992, p. 144): arquissemas e gags.
Para Manoel de Barros, arquissemas são palavras ancestrais que poderosamente comandam o subterrâneo de seu ser. No texto encontramos: pedra, moscas, orvalho que são palavras pertencentes ao mundo natural, do pantanal. Já gags são verdadeiras piadas ou anedotas de poesia; são exercícios de linguagem em que está presente a intuição fantástica: “gags —são alegres sandices cometidas com imagens. Eu faço gags com as palavras.”
(BARROS, Martha. Com o Poeta Manoel de Barros. (Entrevista republicada) In: Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda) Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992, p. 312.)
São exemplos de gags: “O corgo à beira de um menino”, “Um trevo assumiu a tarde”, que no texto aparecem desta maneira: “[...] estava o homem! desenvolvido a moscas.”; “[...] posso ver quanto! é branco o silêncio do orvalho.”
O último poema do livro Retrato do artista quando coisa é também o último do poeta a ser lido. Embora sendo o décimo segundo da segunda parte de uma obra cujos poemas não têm título, este aparece acompanhado da palavra “Apêndice”.
1. Ninguém consegue fugir do erro que veio.
2. Poema é lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é uma sensatez.
3. A limpeza de um verso pode estar ligada a um termo sujo.
4. Por não ser contaminada de contradições a linguagem dos pássaros só produz gorjeios.
5. O início da voz tem formato de sol.
6. O dom de esculpir o orvalho só encontrei na aranha.
7. Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir.
8. Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto lingüístico.
9. Sabedoria pode ser que seja ser mais estudado em gente do que em livros.
10. Quem se encosta em ser concha é que pode saber das origens do som. (p. 81)
Nesse texto presentificam-se algumas das idéias sobre a poesia em Manoel de Barros. O “delírio”, a “sujeira do verso”, “a linguagem dos pássaros”, “instintos lingüísticos” são índices da poesia alógica que se quer transportar para o meio dos sonhos em que a expectativa é o poder mágico de ir além do mundo conhecido, dos limites do racional ou do imaginável. Os gags é que proporcionam esta alogicidade e dão o tom criativo e original ao texto: “Por não ser contaminada de contradições a / linguagem dos pássaros só produz gorjeios.”; “O dom de esculpir o orvalho só encontrei / na aranha.”; “Quem se encosta em ser concha é que pode / saber das origens do som. Esses gags também são importantes no conjunto de significados do texto porque todos fazem a associação de homem-natureza e coisas do mundo-natureza, dando ~ esses elementos a superioridade da condição de apenas ser, situação em que não há contradição (a linguagem humana se contradiz), em que o ato de esculpir (atividade humana) é praticado por uma aranha, e também a mais insólita das imagens; alguém encostar-se em ser concha, sendo a última freqüente, pois o poeta muitas vezes escreve com o corpo, metamorfoseia-se na busca de ser algo da natureza, uma coisa qualquer para ir às origens dos sons, do poético. Portanto, a alogicidade, o animismo, as impurezas e as coisas que se transformam graças às metamorfoses sintetizam o texto.
* Ester Mian Cruz é professora das Faculdades Toledo, Araçatuba -SP
Referências Bibliográficas
BARBOSA, João Alexandre. A Metáfora crítica. São Paulo : Perspectiva, 1974.
BARROS, Manoel. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982.
________ Matéria de poesia. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1982.
________ O guardador de águas. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1982.
________ Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
BARROS, Martha. Com o poeta Manoel de Barros. Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. 2. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1992.
CARONE, Modesto. A poética do silêncio. São Paulo: Perspectiva, 1979.
CASTRO, Afonso. A poética de Manoel de Barros : A linguagem e a volta à infância. Campo Grande : FUCMT
- UCDB, 1992.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2. ed. São Paulo : Duas Cidades, 1991.
HABERMAS, Jüngen. Discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. 3. ed. México : Fondo de Cultura Económica, 1986
WALDMAN, Berta. A poesia ao rés do chão. Gramática Expositiva do Chão – poesia quase toda. 2. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1992.

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